Pequena leitura da adaptação do autor de banda desenhada Manuele Fior da novela de 1924 Menina Else, do escritor austríaco Arthur Schnitzler.
Aquilo que mais suscita a leitura desta adaptação da novela de Schnitzler é tentar compreender como é que a conhecida contribuição do escritor austríaco para aquele mecanismo literário que se conhece como “fluxo da consciência” se presta nestoutra linguagem artística, nestoutra estruturação do pensamento, a qual dá a ver não apenas as palavras (signos que permitem traduzir noções mais abstractas) como as imagens (uma tradução mais concreta, ou uma tomada de opção em relação aos acontecimentos) previstas na novela.
Este autor italiano não pretende desviar-se desse programa da novela, logo, a passagem que faz do material literário para aquele que opera é relativamente “fiel”, encontrando o equilíbrio necessário entre o suscitado pelo pensamento de Else, a narradora e praticamente fonte única das informações diegéticas, e o peso das suas decisões imagéticas. Uma das grandes transformações imediatamente ocorridas é o facto de vermos a personagem. Isto é, por mais que um texto literário se teça na primeira pessoa, a própria presença do/a protagonista na malha visual de um livro obriga-a a surgir como que na terceira pessoa. Como imaginam, esta é uma questão por demais complexa, e que terá a ver com a transposição textual-visual, os elementos constituintes de cada uma destas linguagens bem diversas, e terá implicações maiores daquelas que alguma vez poderíamos abordar neste exíguo espaço (apesar de termos feito, noutro local, uma tentativa de debater este assunto, e exista uma bibliografia específica que lhe está relacionada). Existem casos de bandas desenhadas que tentam dar a perspectiva visual do protagonista (tal como milhentos jogos digitais), como por exemplo um trecho de uma história do The Spirit, de Eisner. Todavia, as mais das vezes essa estratégia visual não corresponde à nossa perspectiva natural, provocando uma maior estranheza face à “naturalidade” (ou melhor, uma convenção mais consensual) de representarmos o protagonista no nosso campo de visão, encontrando momentos parciais de entrosamento da sua e da nossa perspectiva (tema este estudado por Ann Miller e Éric Lavanchy a propósito do livro de Juillard, Le Cahier Bleu).
Dito isto, a narração operada por Fior leva a que em variadíssimos momentos pequenas legendas que correspondem ao pensamento de Else irrompam no plano de composição visual, mostrando reacções dela às situações que se lhe apresentam. Noutro momento, em que Else recebe a fatídica carta da mãe instando-a a, transversalmente, a pedir um “favor” ao senhor Dorsay para que este salve uma dívida do pai, a leitura da carta – sob os nossos olhos, através dos de Else – é interrompida pelas memórias dela de um encontro com esse homem providencial. São apenas trechos mínimos, que nos fazem “descer” pelos corpos de ambos, de modo desarrumado. Estão aí, porém, as sementes para um sentimento de asco que se começa a formar em nós em relação a Dorsay, precisamente porque adivinhamos os sentimentos de Dorsay. Mais à frente, quando Else se sente torturada entre o pedido dos pais e a solução abjecta encontrada por Dorsay, que recai na categoria da mais pura das prostituições, ela fantasia desfechos trágicos, como qualquer adolescente ultra-romântico… essas fantasias, que passam pela sua própria morte, são-nos mostradas em pé de igualdade com a realidade vivida. Essa é outra forma de dar a ver os pensamentos e invenções de Else no plano de visibilidade da banda desenhada, sem estratégias de estranhamento (que se poderiam dar através de um filtro colorido, enquadramentos diferenciados das vinhetas, etc.).
Isto não significa que o autor da banda desenhada não procure outras formas de expressar as pequenas diferenças morais e éticas operadas sobre Else. Se se reparar com atenção, apesar de Else imaginar o que poderá “oferecer” a Dorsay em troca da quantia que salvará o pai, no momento em que essa oferta é ditada pelo próprio Dorsay a cor dela, assim como todo o enquadramento, a focalização, e a gestão de distância/aproximação entre as personagens muda radicalmente, lançando Else numa palidez enfermiça, e Dorsay num enrubescimento lúbrico. Fior gere bem as cores, preocupando-se menos com um determinado realismo do que com a transformação de várias paletas que pretendem corresponder a estados específicos quer da protagonista quer dos espaços por ela atravessados. As associações ou referências formais, da composição de página, de cor, e até mesmo da eleição de uma perspectiva feminina, partem não apenas das promessas da prosa de Schnitzler, como flutuam entre o movimento Secessão de Viena (o que é óbvio, claro está, como se vê na fantasia de Else no seu féretro aberto, colagem a Klimt) e outras bandas desenhadas que tenham atravessado a mesma matéria (penso sobretudo em Casque d’or, de Goetzinger). Mas, sem querer insistir demasiado num tema recorrente, há aqui continuidades do território de Sfar, igualmente (o desenho breve caligráfico, a aguarela como modo de escrita da banda desenhada, a eleição do impressionismo em vez de uma consolidada uniformidade figurativa, etc.).
Else é uma jovem mulher, bela, consciente da sua beleza, algo coquette até. Um determinado grau de sedução e flirt é-lhe natural. Mas aquilo que separa essas fantasias da sua prossecução real, o contacto frio e desapaixonado dos corpos em qualquer paixão é a matéria do estudo de personalidade a que Schnitzler se entrega com a sua novela. Fior consegue mostrá-lo através da inconstância do rosto de Else, a mutação das suas expressões. Pouco importa se o desfecho, a saída, parece datada de um tempo em que ainda parecia possível escapar ao cinismo através de gestos nobres e derradeiros. A sua previsibilidade faz mesmo parte da questão do destino na novela, o grau em que o livre arbítrio é limitado pelas escolhas a que somos forçados, ou até mesmo para as quais caminhamos voluntariamente apesar de sabermos o seu propósito e remate. O que importa nesta instância é o modo como o autor da banda desenhada consegue restituí-lo – e é essa a grande vitória de uma adaptação, não a mera conservação da trama superficial –, a esse gesto, através de uma relação inversa entre o desaparecimento das palavras e a sobrevivência do ambiente pelas imagens do outro lado da vida de Else, traduzindo-se, talvez, as suas últimas impressões.
A short reading of Italian author Manuele Fior adaptation of Austrian writer Arthur Schnitzler's 1924 novella Fraeulein Else into comics.
The first thing that crosses my mind when reading this adaptation of Schnitzler’s novella, is how does it manage to engage with the known Austrian’s contribution to that literary mechanism known as “stream of consciousness”. Comics constitutes an artistic language or discipline, or a thought structure radically different from literature, and an adaptation literature-comics offers not only the original words – the signs which allow to translate abstract notions – but also images – i.e., a more concrete translation, or a stance in relation to the events predicted in the novella.
The Italian comics author has no wish whatsoever to swerve from the original text’s program, so we can affirm that the passage he does from the literary matter to the comics matter is fairly “faithful”, and presents a good balance between the thoughts of Else, the main character, narrator and practically only source of the diegetic information, and they weight of Fior’s own imagetic decisions.
One of the major immediate transformations in a comics adaptation from a literary text is the fact that we see the character. No matter how any given text may be a first-person narrative, a very common narrative mode in literature, the fact that the character is shown within the visual weaving of a comic book forces that character to appear as a “third-person”, that is to say, a character at the same (visual) level as all others. As you may well image, this is fairly complex question, which has been studied often in the academic field, related to text-visual transpositions, to the contrast and complementary relation between the constitutive elements of each of these languages. It is also an issue that opens up larger implications than those that we can address in such a short text. There are cases of comics which attempt to offer up the visual perspective of the protagonist, as for instance one particular Will Eisner’s 1946 The Spirit story, “The Killer” (as well as in hundreds of first-person shooter computer games), but more often than not that visual strategy is still far from our bodily perspective, our daily experience, and it becomes far more “strange” than the “natural” (better said, a more consensual convention) representation of the main character, even if narrating his or her own story, within the pictorial field. Nevertheless, this does not curtail moments in which our own (the reader’s) and the character’s perspective are intermeshed (this is an aspect that has been studied separately by Éric Lavanchy and Ann Miller a propos Juillard’s Le Cahier Bleu).
Having said this, the narrative strategies employed by Fior lead to the presence of many moments in which we read small snippets from Else’s own thoughts. These thoughts appear in captions or free-floating thought balloons (no tail) superposed on the visual composition, more often that not revealing her inner reactions to the situation she finds herself in. When Else receives the ill-fated letter from her mother, pushing her indirectly to “beseech a favor” from M. Dorsay, so that he can help on her father’s debts, the very reading of the letter – under our eyes, through Else’s – is interrupted rhythmically by her own memories of Dorsay, as a child. These are but swift, very short instants of memories, but the way the images go down, erratically, along their bodies, throw the seeds of a terrible, uneasy feeling towards Dorsay, as if we were able, once again, through Else’s unspoken yet visible discomfort, feel Dorsay’s desires. A little ahead in the book, when Else is feeling torn apart between her parents’ request and the abject solution found by Dorsay, which is but the most pure of prostitution acts, she fantasizes about tragic outcomes, as any ultra-romantic teenager would… these fantasies, that enact her own death, are shown in the same level of visual presentation that her lived reality. This is yet another way to show us Else’s thoughts and musings in the visible field allowed by comics, and Fior uses no estrangement strategies whatsoever (as, for instances, the classic use of overall coloring, or different framing forms, and so on).
This does not mean that the comics author is not looking for different ways to express the small yet crucial moral and ethical differences taking place in Else’s heart. If you see it closely, and although Else had some idea of what she could “offer” Dorsay in exchange of his father-rescuing cheque, in the exact moment Dorsay speaks out what that offer could be, Else’s and Dorsay’s skin color, as well as all the focalization and framing devices, the balance between the distance of each other’s bodies, changes dramatically, turning Else as pale as a ghost and having Dorsay turn red with lubricity. Manuele Fior is a wonderful handler of colors, worrying less with a certain degree of realism than with using and changing palettes according to the specific states of mind and emotion that the main character goes through, not to mention the several spaces she crosses. The formal references and associations, the pages’ composition, the colors, an even the fact of having a feminine perspective structuring the whole book, are not only engaged with the promises found in Schnitzler’s prose, as also with the Vienna Secession (an obvious reference, of course, as one can see from the Klimt-influenced image of Else’s open casket fantasy) and other comics oeuvres that have been in similar territory (I’m thinking mainly of Annie Goetzinger’s 1976 Casque d’Or). Another possible affiliation is with that contemporary field of European comics lead by Joann Sfar, using what I call a calligraphic drawing, employing watercolor as a mode of writing comics, choosing an impressionistic approach instead of a consolidated figurative uniformity, etc.
Else is a beautiful, young woman, self-conscious of that beauty. She is a little coquette even. A certain degree of seductiveness and flirty airs is something quite natural to her (as we see in the very first pages of the book). However, that which separates this not-so-innocent fantasies from its full-fledged, concrete, tangible realization, the cold, loveless contact of passionless bodies, is exactly the matter at the center of Schnitzler’s novella, this personality study. Fior is able to translate this through the inconsistencies of Else’s face, the mutation of her expressions. I don’t think it is an important thing is the outcome seems somewhat too much anchored in a time when cynicism could be thwarted by noble, superlative acts. Its predictability is an intrinsic part of the issue of fate that is explored by the novella, that degree in which free will is limited by the choices we are forced to take, or towards which we voluntarily go despite being full aware of its purpose and result. What matters the most in this question is the way the author of this comics book was able to reinstate – and that is the great achievement of any adaptation, not the mere conservation of the surface plot – such a gesture, by the means of an inverted relationship between the withdrawal of the original words and the survival of the environment through the image, especially in the final scenes, from the other side of Else’s life, translating, that way, perhaps, her last impressions.
Old Admin control not available waiting new website
in the next days...
Please be patience.
It will be available as soon as possibile, thanks.
De Dieux /\ SuccoAcido